segunda-feira, 29 de outubro de 2012

Fica um pouco de teu queixo no queixo de tua filha

Todo ano do dia 29 de outubro a gente comia nhoque: 7 bolinhas, em pé, com dinheirinho embaixo do prato. Eu adoro nhoque até hoje, é minha comida favorita.

Depois que os nhoques acabaram e minha infância definitivamente ficou para trás, o que me restou foi a poesia, a memória afetiva, a fotografia, o cheiro de molho de tomate e talvez mais algum resíduo pairando no ar, que não pode ter contornos claramente identificados, mas que jamais passa despercebido.

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Resíduo

De tudo ficou um pouco
Do meu medo. Do teu asco.
Dos gritos gagos. Da rosa
ficou um pouco.

Ficou um pouco de luz
captada no chapéu.
Nos olhos do rufião
de ternura ficou um pouco
(muito pouco).

Pouco ficou deste pó
de que teu branco sapato
se cobriu. Ficaram poucas
roupas, poucos véus rotos
pouco, pouco, muito pouco.

Mas de tudo fica um pouco.
Da ponte bombardeada,
de duas folhas de grama,
do maço
 vazio 
  de cigarros, ficou um pouco.

Pois de tudo fica um pouco.
Fica um pouco de teu queixo
no queixo de tua filha.
De teu áspero silêncio
um pouco ficou, um pouco
nos muros zangados,
nas folhas, mudas, que sobem.

Ficou um pouco de tudo
no pires de porcelana,
dragão partido, flor branca,
ficou um pouco
de ruga na vossa testa,
retrato.

Se de tudo fica um pouco,
mas por que não ficaria
um pouco de mim? no trem
que leva ao norte, no barco,
nos anúncios de jornal,
um pouco de mim em Londres,
um pouco de mim algures?
na consoante?
no poço?

Um pouco fica oscilando
na embocadura dos rios
e os peixes não o evitam,
um pouco: não está nos livros.
De tudo fica um pouco.
Não muito: de uma torneira
pinga esta gota absurda,
meio sal e meio álcool,
salta esta perna de rã,
este vidro de relógio
partido em mil esperanças,
este pescoço de cisne,
este segredo infantil...
De tudo ficou um pouco:
de mim; de ti; de Abelardo.
Cabelo na minha manga,
de tudo ficou um pouco;
vento nas orelhas minhas,
simplório arroto, gemido
de víscera inconformada,
e minúsculos artefatos:
campânula, alvéolo, cápsula
de revólver... de aspirina.
De tudo ficou um pouco.

E de tudo fica um pouco.
Oh abre os vidros de loção
e abafa
o insuportável mau cheiro da memória.

Mas de tudo, terrível, fica um pouco,
e sob as ondas ritmadas
e sob as nuvens e os ventos
e sob as pontes e sob os túneis
e sob as labaredas e sob o sarcasmo
e sob a gosma e sob o vômito
e sob o soluço, o cárcere, o esquecido
e sob os espetáculos e sob a morte escarlate
e sob as bibliotecas, os asilos, as igrejas triunfantes
e sob tu mesmo e sob teus pés já duros
e sob os gonzos da família e da classe,
fica sempre um pouco de tudo.
Às vezes um botão. Às vezes um rato.



Carlos Drummond de Andrade

In: A rosa do povo

quinta-feira, 11 de outubro de 2012

Uma pessoa que eu amo muito me pediu um tempo atrás para escrever um texto pra ela. Não escrevi. Na época achei que haveria muito tempo ainda para isso. Não havia.

Agora talvez não faça mais sentido algum escrever para ela, e de qualquer forma, o que eu queria escrever é tão sublime que eu, cronista dos ratos da minha rua, não poderia.

Mas há quem saiba falar de coisas sublimes, de amor – não esse amor que concorre à prefeitura, nem o amor egoísta que só pensa em si mesmo, nem o amor profano da maçã, nem mesmo o amor sublime dos romances românticas. Esse aqui fala do amor de "eu te amo".

Ah, se já perdemos a noção da hora
Se juntos já jogamos tudo fora
Me conta agora como hei de partir
Ah, se ao te conhecer
Dei pra sonhar, fiz tantos desvarios
Rompi com o mundo, queimei meus navios
Me diz pra onde é que inda posso ir
Se nós nas travessuras das noites eternas
Já confundimos tanto as nossas pernas
Diz com que pernas eu devo seguir
Se entornaste a nossa sorte pelo chão
Se na bagunça do teu coração
Meu sangue errou de veia e se perdeu
Como, se na desordem do armário embutido
Meu paletó enlaça o teu vestido
E o meu sapato inda pisa no teu
Como, se nos amamos feito dois pagãos
Teus seios ainda estão nas minhas mãos
Me explica com que cara eu vou sair
(Eu te amo, Tom Jobim e Chico Buarque)

terça-feira, 9 de outubro de 2012

Antes acompanhada do que só

Um paulistano (ou paulistana) normalmente é pessoa solitária, diz o senso comum. É a identidade do paulistano: não precisa ter nascido aqui para ser paulistano, basta morar aqui e ser um tanto ou um muito solitário para ser dessa cidade.

Muitos são extremamente solitários: filhos únicos de mães solteiras, orfãos, solteiros e sem filhos que moram em quartos individuais alugados. Muitos nem os quartos individuais alugados têm, e muitos têm famílias lindas nos porta-retratos de apartamentos em que cada um vive em seu próprio quarto. Há até alguns desses ermitões urbanos que se juntam para, bebâdos, celebrar o amor. Oh, quanta hipocrisia.

Sempre há amigos, é claro. Mas cada paulistano tem uma cota muito restrita de amigos, e uma cota imensa de conhecidos. Ainda mais distantes são os colegas de trabalho, que passam de 6 a 12 horas por dia juntos preocupando-se com os próprios umbigos corporativos e só olham para o lado para pedir um favor profissional. Pior ainda são os colegas de home-office: esses não têm corpo, cara ou voz, apenas e-mail. E muitos se confundem e pensam que os colegas e conhecidos são ou podem ser seus amigos. Oh, quanta hipocrisia.

Mais distantes são os desconhecidos: o atendente da padaria, o cobrador do ônibus, a moça que atendeu o telefone, o mendigo na porta do metrô. Pouco importa para o paulistano quem são essas pessoas, o que fazem, como são seus nomes, se estão tristes ou nervosas e se etc. Para muitos paulistanos essas pessoas desconhecidas fazem parte da paisagem, como fossem postes ou prédios que se movem, e não seres humanos. Pior ainda: há alguns desses habitantes de Sampa que não sentem nada quando cruzam a Ipiranga com a São João, a não ser profundo desgosto pelos moradores de rua que enfeiam a paisagem. Oh, quanta hipocrisia!

Pior ainda é que todo paulistano já passou por pelo menos algumas dessas situações, e passa todos os dias por novas situações semelhantes. O fator humano nos é indiferente. Trombamos no outro, não pedimos desculpas, e se pedimos, é sem olhar para quem, por pura educação. Condenamos com avidez o "moleque" que nos assalta, e nos esquecemos de quem é ele e por que está ali naquele barco furado conosco.

***

A humanidade é definida como uma espécie de mamíferos bípedes com polegar opositor, neocortex desenvolvido e habilidades sociais e linguísticas. Esses foram os principais resultados do nosso processo evolutivo e, pelo que se sabe, desenvolvemos essas capacidades para poder sobreviver nos ambientes a que fomos expostos. Sem apenas uma dessas características, já não poderíamos ser chamados de seres humanos.

Eu diria que falta ao paulistano a capacidade de sociabilização, de interação com o outro, o que só torna mais difícil sobreviver a são Paulo. Desse ponto de vista, seriam os paulistanos seres humanos?